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sexta-feira, 16 de novembro de 2018


Edição 214 – Outubro 2018
DIVERSÃO E ARTE- Crítica Musical - Escuta Crítica:
A História de Um Arnesto
                                                                         por Larissa Fernandes


Adoniran Barbosa na década de 70
Minha família não cultiva muitos rituais. Se na minha infância, aos domingos, o frango com quiabo da vó reunia todo mundo, hoje, nem esse hábito a gente tem mais. Mas me lembro de assistir momentos sinceros e bonitos da família do meu pai, família de sete irmãos que já passou por maus bocados, inclusive pela fome: através da música, meus tios e meu pai relembravam os tempos de festivais, rodas de violão e serenatas da juventude.
Como o povo pobre espiritualizado desse país, todos sempre foram muito brincalhões; a gente gostava de mexer com as palavras, criar apelidos (chamavam uns aos outros de Bidunga), repetir frases engraçadas, fazer paródias. Uma música que me divertia muito era a historinha do Arnesto, que convidou o pessoal pro samba, mas furou e não avisou. Criança adora músicas que contam historinhas - ainda mais se as palavras forem engraçadas.
Eu não sabia de quem era a música, mas não precisava saber: estava claro que era um hino, uma música que praticamente não precisa de autor mais. Não sabia exatamente a qual época ela pertencia, embora parecesse um pouco antiga. Ela parecia combinar com a simplicidade espiritualizada daquela família. Eu me divertia com as palavras “erradas”. Como professor de Português com consciência de classe, Papai me lembrava de que na língua portuguesa não existia “errado”, só “diferente”.  A gente não ria das palavras “erradas” de maneira jocosa, presunçosa; na verdade, era gostoso encher a boca pra cantar “nós fumos num encontremo ninguém”.
Até pouco tempo eu não tinha a consciência de que essa canção que me evoca, no espírito, memória e simplicidade, também tinha uma história relacionada à memória e à simplicidade. Esses conhecimentos somaram à experiência de ouvi-la, porque uma boa música é assim: articula o saber consciente e inconsciente; articula o pensamento subjetivo e a experiência de uma classe ou de uma nação; transmite sentimentos que vão além das palavras ou dos acordes, sem deixar de marcar posição no mundo cotidiano. A canção da qual falo é Samba do Arnesto, de Adoniran Barbosa, lançada em 1955.
                Adoniran Barbosa, filho de imigrantes italianos semi-analfabetos fugitivos da fome na Europa, não faz parte da leva de sambistas “tradicionais” que já eram considerados cânone do gênero na metade do século passado, como Noel Rosa: pra começar, Adoniran era paulista, e o cânone era carioca.
Na década de 30, quando o samba já havia se estabelecido como “a música nacional”, João Rubinato, nome de batismo de Adoniran, com 21 anos, tenta sua primeira entrada no mundo artístico. Ele tentava se estabelecer através de participações em rádio, mas após críticas à sua voz, resolve tentar a composição. Recebe em 1935 um prêmio de melhor marchinha do ano, e aos trancos e barrancos, em 1936, grava o seu primeiro disco em 78 rotações, Agora podes chorar (Colúmbia). Com relativo sucesso do disco, termina por ser contratado para um papel cômico em um programa de rádio - isso iria influenciar as brincadeiras de suas futuras composições. A década de 40 é marcada por certa estabilidade no meio artístico: nos programas humorísticos, João Rubinato interpretava diversos personagens, entre eles, Adoniran Barbosa, que acabou por dar nome ao sambista.
Saltando para 1951, depois do estrondoso sucesso de Trem das Onze (moro em Jaçanã…), é com Saudosa Maloca e outras canções que Adoniran se diferencia do cânone carioca. O que vai tornar sua obra especial é a linguagem coloquial cheia de erros gramaticais e característica das camadas mais pobres da população. A voz não era empostada, mas rouca e simples. As narrativas se desenvolviam como crônicas, contos do cotidiano. Os temas eram temas conhecidos da população mais pobre, temas que infelizmente permanecem atuais: despejo na favela, ter que ir embora pra não perder o horário do transporte coletivo...
Isso tudo também se aplica, embora com mais comicidade e leveza do que o lamúrio de Saudosa Maloca, ao Samba do Arnesto. Apesar de lançado em 1955, era uma promessa antiga para um Ernesto que de fato existiu (e não deu bolo nenhum em ninguém), mas  demorou a ser gravada por todas as dificuldades que Adoniran enfrentou para estabelecer uma carreira.
Meus tios viveram a juventude nos anos 80, mas essa música era uma memória afetiva deles, porque além do mérito da própria canção, que ficaria na cabeça das pessoas por muito tempo graças à competência do compositor, Adoniran foi relembrado e regravado com mais frequência nos anos 70. Além disso, só a partir dos anos 60 os críticos reconheceram de fato uma cena legítima do samba que fosse externa ao Rio de Janeiro.
Perdurando no tempo, de maneira expandida, Adoniran também foi marcado pelo seu tempo específico. Com suas crônicas do cotidiano, se opunha a “cultura do pogréssio”. De acordo com matéria da Folha, “em janeiro de 1979, caminhando pela remodelada Praça da Sé com o jornalista Julio Saraiva, Adoniran Barbosa manifestou incômodo com o ritmo avassalador de uma cidade que, em nome do "pogréssio", soterrava a própria memória. "Por que é que São Paulo faz isso com São Paulo?". Adoniran cantava uma cidade que morria e renunciava à sua memória para dar lugar à pressa, à selva de pedra - ou seria de preda?
É, Adoniran, São Paulo faz isso com São Paulo, e faz pior: ainda de acordo com a matéria da Folha, sua própria memória foi relegada. “O Museu Adoniran Barbosa mantido nos anos 1980 pela Secretaria de Esportes e Turismo de São Paulo era, na prática, apenas um depósito, que no final dos anos 1990 já nem recebia visitantes. Nos anos 2000, a família entregou o acervo do sambista para a Secretaria da Cultura —apenas para, ao vê-lo sistematicamente menosprezado, revogar a doação das peças alguns anos depois.”
Apesar dessa tremenda incompetência institucional, a memória de Adoniran e do Brasil está eternizada nas rodas de samba. O lirismo, humor e crítica social de suas composições são o atestado da beleza e da espiritualidade através da música combinada com a palavra, através da metalinguagem do Samba do Arnesto - um samba sobre uma roda de samba que não aconteceu.
A música tem um ritmo que combina com a cadência divertida das palavras “erradas”. Os tradicionais últimos quatro versos falados das composições de Adoniran aproximam mais ainda o compositor do ouvinte. Porém, mais do que uma bela execução técnica, de um cantor e compositor que, afinal, teve a voz muito criticada antes de fazer algum sucesso, ficam os acordes e as palavras, para qualquer grupo de pessoas com um violão e com memória, que quiser brincar de cantar “errado”. Mesmo com a leveza da simples história de um amigo que chamou pra um samba e deu um bolo, a música e as palavras furam o concreto, o espesso tecido da pressa, a parede da abstenção da memória em prol do cosmopolitismo e do progresso. Com simplicidade, voz rouca e humor. Assinado em cruz porque não sei escrever. Arnesto.
*Larissa Fernandes é graduanda de Jornalismo da UFMG, artista e @esmagadinha no twitter, instagram, facebook e youtube


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