Edição 214 – Outubro 2018
DIVERSÃO E
ARTE- Crítica
Musical - Escuta Crítica:
A História
de Um Arnesto
por Larissa Fernandes
Adoniran Barbosa na década de 70 |
Minha família não
cultiva muitos rituais. Se na minha infância, aos domingos, o frango com quiabo
da vó reunia todo mundo, hoje, nem esse hábito a gente tem mais. Mas me lembro
de assistir momentos sinceros e bonitos da família do meu pai, família de sete
irmãos que já passou por maus bocados, inclusive pela fome: através da música,
meus tios e meu pai relembravam os tempos de festivais, rodas de violão e
serenatas da juventude.
Como o povo pobre
espiritualizado desse país, todos sempre foram muito brincalhões; a gente
gostava de mexer com as palavras, criar apelidos (chamavam uns aos outros de
Bidunga), repetir frases engraçadas, fazer paródias. Uma música que me divertia
muito era a historinha do Arnesto, que convidou o pessoal pro samba, mas furou
e não avisou. Criança adora músicas que contam historinhas - ainda mais se as
palavras forem engraçadas.
Eu não sabia de
quem era a música, mas não precisava saber: estava claro que era um hino, uma
música que praticamente não precisa de autor mais. Não sabia exatamente a qual
época ela pertencia, embora parecesse um pouco antiga. Ela parecia combinar com
a simplicidade espiritualizada daquela família. Eu me divertia com as palavras
“erradas”. Como professor de Português com consciência de classe, Papai me
lembrava de que na língua portuguesa não existia “errado”, só “diferente”. A gente não ria das palavras “erradas” de
maneira jocosa, presunçosa; na verdade, era gostoso encher a boca pra cantar
“nós fumos num encontremo ninguém”.
Até pouco tempo
eu não tinha a consciência de que essa canção que me evoca, no espírito,
memória e simplicidade, também tinha uma história relacionada à memória e à
simplicidade. Esses conhecimentos somaram à experiência de ouvi-la, porque uma
boa música é assim: articula o saber consciente e inconsciente; articula o
pensamento subjetivo e a experiência de uma classe ou de uma nação; transmite
sentimentos que vão além das palavras ou dos acordes, sem deixar de marcar
posição no mundo cotidiano. A canção da qual falo é Samba do Arnesto, de Adoniran Barbosa, lançada em 1955.
Adoniran Barbosa, filho de
imigrantes italianos semi-analfabetos fugitivos da fome na Europa, não faz
parte da leva de sambistas “tradicionais” que já eram considerados cânone do
gênero na metade do século passado, como Noel Rosa: pra começar, Adoniran era
paulista, e o cânone era carioca.
Na década de 30,
quando o samba já havia se estabelecido como “a música nacional”, João
Rubinato, nome de batismo de Adoniran, com 21 anos, tenta sua primeira entrada
no mundo artístico. Ele tentava se estabelecer através de participações em
rádio, mas após críticas à sua voz, resolve tentar a composição. Recebe em 1935
um prêmio de melhor marchinha do ano, e aos trancos e barrancos, em 1936, grava
o seu primeiro disco em 78 rotações, Agora
podes chorar (Colúmbia). Com relativo sucesso do disco, termina por ser
contratado para um papel cômico em um programa de rádio - isso iria influenciar
as brincadeiras de suas futuras composições. A década de 40 é marcada por certa
estabilidade no meio artístico: nos programas humorísticos, João Rubinato
interpretava diversos personagens, entre eles, Adoniran Barbosa, que acabou por
dar nome ao sambista.
Saltando para
1951, depois do estrondoso sucesso de Trem
das Onze (moro em Jaçanã…), é com Saudosa
Maloca e outras canções que Adoniran se diferencia do cânone carioca. O que
vai tornar sua obra especial é a linguagem coloquial cheia de erros gramaticais
e característica das camadas mais pobres da população. A voz não era empostada,
mas rouca e simples. As narrativas se desenvolviam como crônicas, contos do
cotidiano. Os temas eram temas conhecidos da população mais pobre, temas que
infelizmente permanecem atuais: despejo na favela, ter que ir embora pra não
perder o horário do transporte coletivo...
Isso tudo também
se aplica, embora com mais comicidade e leveza do que o lamúrio de Saudosa Maloca, ao Samba do Arnesto. Apesar de lançado em 1955, era uma promessa
antiga para um Ernesto que de fato existiu (e não deu bolo nenhum em ninguém),
mas demorou a ser gravada por todas as
dificuldades que Adoniran enfrentou para estabelecer uma carreira.
Meus tios viveram
a juventude nos anos 80, mas essa música era uma memória afetiva deles, porque
além do mérito da própria canção, que ficaria na cabeça das pessoas por muito
tempo graças à competência do compositor, Adoniran foi relembrado e regravado
com mais frequência nos anos 70. Além disso, só a partir dos anos 60 os
críticos reconheceram de fato uma cena legítima do samba que fosse externa ao Rio
de Janeiro.
Perdurando no
tempo, de maneira expandida, Adoniran também foi marcado pelo seu tempo
específico. Com suas crônicas do cotidiano, se opunha a “cultura do pogréssio”.
De acordo com matéria da Folha, “em
janeiro de 1979, caminhando pela remodelada Praça da Sé com o jornalista Julio
Saraiva, Adoniran Barbosa manifestou incômodo com o ritmo avassalador de uma
cidade que, em nome do "pogréssio", soterrava a própria memória.
"Por que é que São Paulo faz isso com São Paulo?". Adoniran
cantava uma cidade que morria e renunciava à sua memória para dar lugar à
pressa, à selva de pedra - ou seria de preda?
É, Adoniran, São
Paulo faz isso com São Paulo, e faz pior: ainda de acordo com a matéria da
Folha, sua própria memória foi relegada. “O
Museu Adoniran Barbosa mantido nos anos 1980 pela Secretaria de Esportes e
Turismo de São Paulo era, na prática, apenas um depósito, que no final dos anos
1990 já nem recebia visitantes. Nos anos 2000, a família entregou o acervo do
sambista para a Secretaria da Cultura —apenas para, ao vê-lo sistematicamente
menosprezado, revogar a doação das peças alguns anos depois.”
Apesar dessa
tremenda incompetência institucional, a memória de Adoniran e do Brasil está
eternizada nas rodas de samba. O lirismo, humor e crítica social de suas
composições são o atestado da beleza e da espiritualidade através da música
combinada com a palavra, através
da metalinguagem do Samba do Arnesto
- um samba sobre uma roda de samba que não aconteceu.
A música tem um
ritmo que combina com a cadência divertida das palavras “erradas”. Os
tradicionais últimos quatro versos falados das composições de Adoniran
aproximam mais ainda o compositor do ouvinte. Porém, mais do que uma bela
execução técnica, de um cantor e compositor que, afinal, teve a voz muito
criticada antes de fazer algum sucesso, ficam os acordes e as palavras, para
qualquer grupo de pessoas com um violão e com memória, que quiser brincar de
cantar “errado”. Mesmo com a leveza da simples história de um amigo que chamou
pra um samba e deu um bolo, a música e as palavras furam o concreto, o espesso
tecido da pressa, a parede da abstenção da memória em prol do cosmopolitismo e
do progresso. Com simplicidade, voz rouca e humor. Assinado em cruz porque não
sei escrever. Arnesto.
*Larissa
Fernandes é graduanda de Jornalismo da UFMG, artista e
@esmagadinha no twitter, instagram, facebook e youtube
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