Edição 196 – Março 2017
Opinião
O
fim do emprego
Vladimir
Safatle
Nunca na história
da República o Congresso Nacional votou uma lei tão contrária aos interesses da
maioria do povo brasileiro de forma tão sorrateira. A terceirização irrestrita
aprovada nesta semana cria uma situação geral de achatamento dos salários e
intensificação dos regimes de trabalho, isto em um horizonte no qual, apenas
neste ano, 3,6 milhões de pessoas voltarão à pobreza.
Estudos sobre o
mercado de trabalho demonstram como trabalhadores terceirizados ganham, em
média, 24% menos do que trabalhadores formais, mesmo trabalhando, em média,
três horas a mais do que os últimos. Este é o mundo que os políticos brasileiros
desejam a seus eleitores.
Nenhum deputado,
ao fazer campanha pela sua própria eleição em 2014, defendeu reforma parecida.
Ninguém prometeu a seus eleitores que os levariam ao paraíso da flexibilização
absoluta, onde as empresas poderão usar trabalhadores de forma sazonal, sem
nenhuma obrigatoriedade de contratação por até 180 dias. Ou seja, esta lei é um
puro e simples estelionato eleitoral feito só em condições de sociedade
autoritária como a brasileira atual.
Da lei aprovada
nesta semana desaparece até mesmo a obrigação da empresa contratante de
trabalho terceirizado fiscalizar se a contratada está cumprindo obrigações
trabalhistas e previdenciárias. Em um país no qual explodem casos de trabalho
escravo, este é um convite aberto à intensificação da espoliação e à
insegurança econômica.
Ao menos, ninguém
pode dizer que não entendeu a lógica da ação. Em uma situação na qual a
economia brasileira está em queda livre, retirar direitos trabalhistas e
diminuir os salários é usar a crise como chantagem para fortalecer o patronato
e seu processo de acumulação. Isto não tem nada a ver com ações que visem o
crescimento da economia. Como é possível uma economia crescer se a população
está a empobrecer e a limitar seu consumo?
Na verdade, a
função desta lei é acabar com a sociedade do emprego. Um fim do emprego feito
não por meio do fortalecimento de laços associativos de trabalhadores
detentores de sua própria produção, objetivo maior dos que procuram uma
sociedade emancipada. Um fim do emprego por meio da precarização absoluta dos
trabalhos em um ambiente no qual não há mais garantias estatais de defesa
mínima das condições de vida. O Brasil será um país no qual ninguém conseguirá
se aposentar integralmente, ninguém será contratado, ninguém irá tirar férias.
O engraçado é lembrar que a isto alguns chamam "modernização".
De fato, há
sempre aqueles dispostos à velha identificação com o agressor. Sempre há uma
claque a aplaudir as decisões mais absurdas, ainda mais quando falamos de uma
parcela da classe média que agora flerta abertamente com o fascismo. Eles dirão
que a flexibilização irrestrita aumentará a competitividade, que as pessoas
precisarão ser realmente boas no que fazem, que os inovadores e competentes
terão seu lugar ao sol. Em suma, que tudo ficará lindo se deixarmos livre a
divina mão invisível do mercado.
O detalhe é que,
no mundo dessas sumidades, não existe monopólio, não existe cartel, não existem
empresas que constroem monopólios para depois te fazer consumir carne
adulterada e cerveja de milho, não existe concentração de renda, rentismo,
pessoas que nunca precisarão de fato trabalhar por saberem que receberão
herança e patrimônio, aumento da desigualdade. Ou seja, o mundo destas pessoas
é uma peça de ficção sem nenhuma relação com a realidade.
Mas nada seria
possível se setores da imprensa não tivesse, de vez, abandonado toda ideia
elementar de jornalismo.
Por exemplo, na
semana passada o Brasil foi sacudido por enormes manifestações contra a reforma
da previdência. Em qualquer país do mundo, não haveria veículo de mídia, por
mais conservador que fosse, a não dar destaque a centenas de milhares de
pessoas nas ruas contra o governo. A não ser no Brasil, onde não foram poucos
os jornais e televisões que simplesmente agiram como se nada, absolutamente
nada, houvesse acontecido. No que eles repetem uma prática de que se serviram
nos idos de 1984, quando escondiam as mobilizações populares por Diretas Já!. O
que é uma forma muito clara de demonstrar claramente de que lado sempre
estiveram. Certamente, não estão do lado do jornalismo.
Vladimir
Safatle é filósofo e professor da USP - FSP, 24.03.2017
OPINIÃO
Terceirização e
desumanização
Amadeu
Garrido
"Não
te dei, ó Adão, meu rosto, nem um lugar que te seja próprio, nem qualquer dom
particular, para que teu rosto, teu lugar e teus dons, os conquistes e seja tu
mesmo a possuí-los. Encerra a natureza outras espécies por mim estabelecidas.
Mas tu, que não conheces qualquer limite, só mercê do teu arbítrio, em cujas
mãos te coloquei, te defines a ti próprio. Coloquei-te no centro do mundo, para
que melhor possas contemplar o que o mundo contém. Não te fiz nem celeste nem
terrestre, nem mortal nem imortal, para que tu, livremente, tal como um bom
pintor ou um hábil escultor, dês acabamento à forma que te é própria".
(Picolo de La Miranda, "in" "Reflexão Ética Sobre a Dignidade da
Vida".
Superados
os governos que nos afundaram em pântano profundo, mas presentes seus efeitos,
não por isso devemos ser acríticos no processo de resgate do bem do País e de
nosso homem.
A
terceirização desumaniza porque cria o terceirado, talvez reduzido "às
outras espécies por mim estabelecidas".
Façamos
abstração do atentado à isonomia material. Como trabalhador se segunda
categoria, sem vínculo, sem identificação, sem compromisso com a empresa que se
vale de sua força de trabalho, esta é a única coisa que parece importar. O
trabalho não é algo espiritualizado. Logo, passamos a maior parte de nossas
vidas engessados no mundo material, grosso e tosco.
A
terceirização consagra essa brutalidade do homem. Não mão inversa dos que
consideram o trabalho parte da essência humana. Sem trabalho, criativo e
consciente, o homem não é homem, pelo menos na acepção que adotamos, cremos que
em boa companhia.
Porque
ficar satisfeito, realizado, o terceirizado, com sua obra? A qualquer momento
poderá estar em outra empresa. Esse aperfeiçoamento não faz parte de sua
natureza humana. E, indiretamente, com reflexo sobre os efetivos, tomados do
medo de demissão e não das esperanças compatibilizadas com as esperanças da
empresa. Ambos homens partidos ao meio no plano espiritual ou psicológico, no
consciente e no inconsciente. Não é esse tipo de andrógino ser desfigurado que
deve povoar a Terra.
Nossa
Constituição assenta como preceito fundante o valor social do trabalho.
Não se confunde o princípio com salário e outras contrapartidas materiais. Tem
em mente essa espiritualidade do labor.
A
Lei Complementar nº 7/70 (quem diria?) fala em "integração do empregado na
vida e no desenvolvimento da empresa". Para seus fins, é certo, mas o
valor incrustrado na norma é um dos "princípios implícitos" de
direitos de nossa Carta Política. Assim como a "proibição de
retrocesso" dos direitos sociais, explícitos em outras Cartas
Constitucionais.
A Carta
Encíclica "Laborens Exercens", divulgada pelo Papa João Paulo II por
ocasião do 90º aniversário da "Rerum Novarum", diz que "somente
o homem tem capacidade para o trabalho e somente o homem o realiza preenchendo
com ele a sua existência sobre a Terra. Assim, o trabalho comporta em si uma
marca particular do homem e da humanidade, a marca de uma pessoa que é pessoa
numa comunidade de pessoas; e uma tal marca determina a qualificação interior
do mesmo trabalho e, em certo sentido, constitui a sua própria natureza"
(Prólogo).
Contra
todos esses princípios, ao terceirizar, a Câmara dos Deputados do Brasil
transformou-o num imenso zoológico.
Amadeu Roberto Garrido de Paula, é Advogado e sócio do Escritório Garrido de Paula Advogados, com
uma ampla visão sobre política, economia, cenário sindical e assuntos
internacionais.
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