Edição 140-Agosto/2012
Votar
Raquel de Queiroz
Não sei se vocês têm meditado como devem no funcionamento do complexo maquinismo político que se chama govêrno democrático, ou govêrno do povo. Em política a gente se desabitua de tomar as palavras no seu sentido imediato.
No entanto, talvez
não exista, mais do que esta, expressão nenhuma nas línguas vivas que deva ser
tomada no seu sentido mais literal: govêrno do povo.
Numa democracia, o
ato de votar representa o ato de fazer o govêrno.
Pelo voto não se
serve a um amigo, não se combate um inimigo, não se presta ato de obediência a
um chefe, não se satisfaz uma simpatia. Pelo voto a gente escolhe, de maneira
definitiva e irrecorrível, o indivíduo ou grupo de indivíduos que nos vão
governar por determinado prazo de tempo.
Escolhe-se pelo
voto aquêles que vão modificar as leis velhas e fazer leis novas - e quão
profundamente nos interessa essa manufatura de leis! A lei nos pode dar e nos
pode tirar tudo, até o ar que se respira e a luz que nos alumia, até os sete
palmos de terra da derradeira moradia.
Escolhemos
igualmente pelo voto aquêles que nos vão cobrar impostos e, pior ainda, aquêles
que irão estipular a quantidade dêsses impostos.
Vejam como é grave
a escolha dêsses “cobradores”. Uma vez lá em cima podem nos arrastar à penúria,
nos chupar a última gôta de sangue do corpo, nos arrancar o último vintém do
bôlso.
E, por falar em
dinheiro, pelo voto escolhem-se não só aquêles que vão receber, guardar e gerir
a fazenda pública, mas também se escolhem aquêles que vão “fabricar” o
dinheiro. Esta é uma das missões mais delicadas que os votantes confiam aos
seus escolhidos. Pois, se a função emissora cai em mãos desonestas, é o mesmo
que ficar o país entregue a uma quadrilha de falsários.
Êles desandam a
emitir sem conta nem limite, o dinheiro se multiplica tanto que vira papel
sujo, e o que ontem valia mil, hoje não vale mais zero.
Não preciso
explicar muito êste capítulo, já que nós ainda nadamos em plena inflação e
sabemos à custa da nossa fome o que é ter moedeiros falsos no poder.
Escolhem-se nas eleições aquêles que têm direito de demitir e nomear
funcionários, e presidir a existência de todo o organismo burocrático.
E, circunstância
mais grave e digna de todo o interêsse: dá-se aos representantes do povo que
exercem o poder executivo o comando de tôdas as fôrças armadas: o exército, a
marinha, a aviação, as polícias. E assim, amigos, quando vocês forem
levianamente levar um voto para o Sr. Fulaninho que lhes fêz um favor, ou para
o Sr. Sicrano que tem tanta vontade de ser governador, coitadinho, ou para
Beltrano que é tão amável, parou o automóvel, lhes deu uma carona e depois
solicitou o seu sufrágio - lembrem-se de que não vão proporcionar a êsses
sujeitos um simples emprêgo bem remunerado.Vão lhes entregar um poder enorme e
temeroso, vão fazê-los reis; vão lhes dar soldados para êles comandarem - e
soldados são homens cuja principal virtude é a cega obediência às ordens dos
chefes que lhe dá o povo. Votando, fazemos dos votados nossos representantes
legítimos, passando-lhes procuração para agirem em nosso lugar, como se nós
próprios fôssem. Entregamos a êsses homens tanques, metralhadoras, canhões,
granadas, aviões, submarinos, navios de guerra - e a flor da nossa mocidade, a
êles prêsa por um juramento de fidelidade. E tudo isso pode se virar contra nós
e nos destruir, como o monstro Frankenstein se virou contra o seu amo e
criador. Votem, irmãos, votem. Mas pensem bem antes. Votar não é assunto
indiferente, é questão pessoal, e quanto! Escolham com calma, pesem e meçam os
candidatos, com muito mais paciência e desconfiança do que se estivessem
escolhendo uma noiva. Porque, afinal, a mulher quando é ruim, briga-se com ela,
devolve-se ao pai, pede-se desquite. E o govêrno, quando é ruim, êle é quem
briga conosco, êle é que nos põe na rua, tira o último pedaço de pão da bôca
dos nossos filhos e nos faz apodrecer na cadeia. E quando a gente não se
conforma, nos intitula de revoltoso e dá cabo de nós a ferro e fogo.
E agora um conselho final, que pode parecer um mau conselho, mas no fundo
é muito honesto. Meu amigo e leitor, se você estiver comprometido a votar com
alguém, se sofrer pressão de algum poderoso para sufragar êste ou aquêle
candidato, não se preocupe. Não se prenda infantilmente a uma promessa
arrancada à sua pobreza, à sua dependência ou à sua timidez. Lembre-se de que o
voto é secreto. Se o obrigam a prometer, prometa. Se tem mêdo de dizer não,
diga sim. O crime não é seu, mas de quem tenta violar a sua livre escolha. Se,
do lado de fora da seção eleitoral, você depende e tem mêdo, não se esqueça de
que dentro da cabine indevassável você é um homem livre. Falte com a palavra
dada à fôrça, e escute apenas a sua consciência. Palavras o vento leva, mas a consciência
não muda nunca, acompanha a gente até o inferno”.
Texto
de Raquel de Queiroz. Revista O Cruzeiro, 11 de janeiro de 1947.
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