Edição 162 – Maio/2014
Opinião
A Copa que não
comemorei
Elza
Soares*
Além de ter sido um período difícil para o
Brasil, a ditadura militar foi quando tive minha casa metralhada. Estávamos
todos lá: eu, Garrincha e meus filhos. Os caras entraram, metralharam tudo e
nunca soube o motivo.
Era 1970, já tínhamos recebido telefonemas
e cartas anônimas, nos sentíamos ameaçados e deixamos o país. Acredito que
fizeram isso por conta do Garrincha, mas também por mim, pois eu era muito
inflamada e então, como ainda hoje, de falar o que penso. Eu andava muito com o
Geraldo Vandré e devem ter pensado que eu estava envolvida com política. Mas eu
sou uma operária da música, e qual é o operário que não se revolta?
Fomos para Roma, e lá o Garrincha, que não
tinha sido convocado para aquela Copa, estava em desespero por não estar
jogando e por não ter onde morar. Estávamos num hotel, vendo o Brasil ser
campeão. Foi quando o Juca Chaves foi comemorar na Piazza Navona, onde fica a
embaixada brasileira.
Estávamos trancados dentro de um
apartamento, e o Garrincha queria sair de qualquer maneira: queria participar
da festa, mas ao mesmo tempo estava altamente deprimido. Ele perdeu a casa,
teve de deixar o país e não sabíamos como voltar.
Enquanto se celebrava o fato de o país se
tornar o primeiro tricampeão na história da Copa do Mundo, o Brasil fazia
barbaridades com sua população. O Garrincha sentia um misto de alegria e dor,
porque ele queria comemorar, mas, ao mesmo tempo, sentia repulsa por tudo que
nos havia acontecido.
Imagine o que é para um homem que, para
mim, está acima de qualquer nome no futebol brasileiro, sem mandado embora do
país. Isso já é tenebroso, vergonhoso; imagine então esse homem vendo aquela
conquista, confinado numa selva de pedra, no exterior, sem entender nada, sem
saber o que havia acontecido em nossa casa.
Aquela foi a época em que ele mais bebeu, e
não saia de casa, pois tinha vergonha de aparecer embriagado. Eu fazia de tudo
para ele não beber, mas não adiantava.
Era tão grande a minha angústia que eu
tinha vontade de invadir a embaixada brasileira em Roma. Mas segurei a onda.
Continuamos vivendo num hotel e tivemos grande ajuda de Chico Buarque e
Marieta. Eles tinham se exilado na cidade e foram dois amigos de alma.
Ali eu tive um bom empresário, trabalhei
muito e fui ganhando o dinheiro com o qual pagava todas as contas. Durante um
jantar, conheci Ella Fitzgerald, que estava fazendo shows com repertório de
bossa nova e teve um problema de saúde. Eu acabei substituindo-a.
Mas, quando descobriram que eu estava
trabalhando na Itália sem documentação, tivemos de sair de Roma-então fomos
para Portugal por um tempo.
Um dia, estávamos no Cassino Estoril, perto
de Lisboa, e encontramos o apresentador Flávio Cavalcanti e o Mauricio Sherman,
que dirigia um programa na TV Tupi. Eles deram ao Garrincha uma camisa do
Brasil, querendo homenageá-lo - mas quem queria camisa da seleção naquela
altura?
"Obrigado o ..., cadê minha casa, cadê
minha moradia? Já vesti a camisa do Brasil anteriormente, já dei tudo que eu
poderia ter dado ao Brasil", ele disse.
Passados 50 anos do golpe, ninguém jamais
tomou nenhuma atitude sobre o que nos aconteceu naquele 1970, e eu continuo
brigando pelo Mané, até hoje.
Quando eu canto "Meu Guri", canto
com muita força, e essa é uma maneira que eu tenho de cantar uma música do
Chico, mas homenageando o Mané. Eles são os dois guris de "my life".
*Elza Soares, 76 anos, é cantora
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